A Alma Gémea
Nenhum sonho custa tanto a abandonar como o sonho de ter uma alma gémea, nem que seja noutro canto do mundo, uma alma tão perto da nossa como a vida. O que é a alma? É o que resta depois de tudo o que fizemos e dissemos. Podemos traí-la e contrariá-la, mesmo sem saber, porque nunca podemos conhecê-la. Só através duma alma gémea. Fácil dizer. Agora como é que consigo falar?
As almas gémeas quase nunca se encontram, mas, quando se encontram, abraçam-se. Naqueles momentos em que alguém diz uma coisa, que nunca ouvimos, mas que reconhecemos não sei de onde. E em que mergulhamos sem querer, como se estivéssemos a visitar uma verdade que desconfiávamos existir, de onde desconfiamos ter vindo, mas aonde nunca tínhamos conseguido voltar.
O coração sente-se. A alma pressente-se. O coração anda aos saltos dentro do peito, a soluçar como um doido, tão óbvio que chega a chatear. Mas a alma é uma rocha branca onde estão riscados os sinais indecifráveis da nossa existência. Não muda, não se mostra, não se dá a conhecer. O coração ama. Mas é na alma que o amor mora. Todos os amores. Toda a vida.
A alma deixa o coração à solta, como tonto que ele é, e despreocupa-se e desprende-se do corpo, porque tem mais que fazer. E o que faz a alma? Mandar escondidamente na parte da nossa vida que não tem expressão material ou física. Está mal dito, mas está certo, porque estas coisas não se podem sequer dizer.
Miguel Esteves Cardoso
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